“[...] Direitos humanos, por mais fundamentais que sejam, são direitos
históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias caracterizadas por lutas
em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo
gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. Norberto Bobbio.
Desde a
Segunda Guerra Mundial, em decorrência das atrocidades ocorridas durante este
período, os direitos humanos constituem um dos temas principais do direito
internacional.
A normatividade internacional de proteção dos direitos humanos foi obtida por meio de incessantes lutas históricas, e ratificada em diversos inúmeros tratados internacionais concluídos com esse propósito, a internacionalização dos direitos humanos foi fruto de um processo lento e gradual.
Desde a Convenção Americana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra a Mulher realizada em Belém, capital do Estado do Pará em 1994 o Brasil,
assim como diversos países signatários que participaram do referido evento se
comprometeriam a adotar políticas públicas destinadas a criação de legislações
específicas destinadas a proteção da mulher, em face da demora o Brasil foi
responsabilizado pelos prejuízos acarretados por tamanha morosidade tal qual
demonstrou o Relatório nº 54/01 da OEA – Organização dos Estados Americanos
após a análise do Caso nº 12.051/OEA no dia 04 de abril de 2001 encaminhado por
Maria da Penha Maia Fernandes.
Em 28 de junho de 2002 o Brasil ratificou o Protocolo Facultativo à
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a
Mulher a com esta inovação trouxe a possibilidade de novas vítimas, a exemplo de Maria da Penha Maia Fernandes que
encaminhou as suas denúncias diretamente ao comitê, tornando o processo
desburocratizado e mais célere.
A Lei Maria da Penha derivou do Caso nº 12.051/OEA (paradigma) no qual
Maria da Penha Maia Fernandes, Biofarmacêutica de 67 anos que em 1983 ficou
paraplégica por força das agressões físicas causadas pelo marido e por isso encaminhou o
seu caso a OEA – Organização dos Estados Americanos, vale frisar que apesar do
mesmo ter sido condenado a 8 anos de prisão ficou preso por apenas dois e hoje
está livre de forma a que todos os prejuízos decorrentes do tratamento médico e
as despesas decorrentes das concessões de benefícios previdenciários não foram
ressarcidas pelo agressor.
Analisando a Lei Maria da Penha (lei federal nº 11.340/2006) no viés
filosófico cumpre destacar que este dispositivo legal tem raízes históricas com
o Princípio Aristotélico da Equidade no qual se lastreia pela seguinte
premissa: “tratar os iguais com igualdade e os desiguais na mesma proporção das
suas desigualdades” no qual em sede de direito material a referida lei tem
previsão constitucional no artigo 226,§ 8º da Carta Maior, senão vejamos o
dispositivo legal:
"O Estado assegurará a assistência à família na pessoa
de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no
âmbito de suas relações".
Foi exatamente esta a base jurídica utilizada pelo STF – Supremo
Tribunal Federal no dia 09 de fevereiro de 2012 para afastar a incidência das regras
constantes na lei federal nº 9.099/1995 (lei dos Juizados Especiais Cíveis e
Criminais) e da própria Lei Maria da Penha (lei federal nº 11.340/2006) que
exigiam representação da vítima para que o Ministério Público pudesse proceder
a persecução penal, doravante a decisão do Pretório Excelso a persecução penal
em casos de violência contra a mulher acontecerá mesmo que a vítima não
registre o Boletim de Ocorrência da delegacia ou formalize representação contra
o agressor.
No âmbito processual ocorre a inversão do ônus da prova no qual cabe
ao agressor comprovar que não ocorreu tal agressão, esta é uma forma de
resguardar a eficácia probatória da ocorrência do fato delituoso ante o fato de
que na maioria das vezes os crimes deste gênero ocorrem sem a presença de
testemunhas.
A CLT – Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto Lei nº 5.452/1943),
o Código de Defesa do Consumidor (lei federal nº 8.078/1990) também utilizam
princípios similares no que tange a inversão do ônus da prova a fim de proteger
o hipossuficiente, sendo estes respectivamente o trabalhador e o consumidor.
O Princípio da Equidade possibilita que Estado crie diversos
dispositivos legais que viabilizem a correção de históricas distorções sociais.
A partir
de agora, os casos de pacientes vítimas de violência que chegam aos
estabelecimentos de saúde – públicos e privados – terão que ser notificados ao
Ministério da Saúde (MS). Antes, os hospitais só precisavam notificar as
autoridades policiais.
A medida
está valendo desde a quarta-feira (26), de Janeiro de 2011, dia em que foi
publicada a Portaria Nº 104/MS, no Diário Oficial da União (DOU) e inclui a
violência doméstica e sexual. A Lei também obriga profissionais da Saúde a
informarem em até 24h casos graves ou mortes causadas pela Dengue.
A Lista de
Notificações Compulsórias (LNC), que acaba de incluir os casos de violência,
foi atualizada pela última vez em setembro de 2010. Ela é composta por doenças,
agravos e ocorrências selecionadas de acordo com critérios de magnitude,
potencial de disseminação, transcendência, vulnerabilidade, disponibilidade de
medidas de controle e compromissos internacionais com programas de erradicação,
entre outros fatores.
Com a
inclusão dos casos de violência doméstica, sexual e outras, a relação de casos
a serem relatados passa a contar com 45 itens. Embora não trate especificamente
da violência contra as mulheres, o texto automaticamente remete a casos de
estupro e agressão física, dos quais elas são as maiores vítimas.
Ademais
será de fundamental importância que o Estado brasileiro estruture os seus
órgãos públicos de forma a assegurar que o agressor através de pesadas
indenizações seja compelido a ressarcir os cofres públicos das despesas
advindas com o equacionamento dos imbróglios vinculados a violência contra a
mulher, sobretudo no aspecto da saúde e da previdência, associada a
indenizações por danos matérias e morais direcionadas à própria vítima.
A Lei 11.340 de 07.08.2006 versa sobre a Violência Doméstica, é
conhecida como Lei Maria da Penha, concebida a
partir de um evento, ou alguns eventos dramáticos no interior doméstico,
concede à mesma um diferencial definitivo.
O texto do preâmbulo da lei nº 11.340/06 diz o seguinte:
“Cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º, do art.226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de
Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências.”
Até o seu advento a violência doméstica não era
considerada crime. Somente a lesão corporal recebia uma pena mais severa quando
praticada em decorrência de relações domésticas prevista no CP, art. 129, § 9º. As
demais formas de violência perpetradas em decorrência das relações familiares
geravam no máximo aumento de pena previsto CP,
art. 61, II, letra “f”.
Existe
uma fonte
básica para a análise dos homicídios no país, em todos os Mapas da Violência
até hoje elaborados, é o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) da
Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde (MS). Pela
legislação vigente no Brasil (Lei nº 6015, de 31/12/73, com as alterações
introduzidas pela Lei nº 6.216, de 30/06/75), nenhum sepultamento pode ser
feito sem a certidão de registro de óbito correspondente.
Este registro deve ser feito à vista de
declaração de óbito atestado por médico, ou na falta de médico na localidade exige-se
duas pessoas qualificadas e que tenham presenciado ou constatado a morte. Essa
declaração é coletada pelas Secretarias Municipais de Saúde, enviadas às
Secretarias Estaduais de Saúde e centralizadas posteriormente pelo MS. A
declaração de óbito, instrumento padronizado nacionalmente, fornece dados
relativos à idade, sexo, estado civil, profissão e local de residência da
vítima.
Outra informação relevante para o nosso estudo e
exigida pela legislação é a causa da morte. Tais causas são classificadas pelo
SIM seguindo os capítulos da Classificação Internacional de Doenças (CID) da
Organização Mundial da Saúde (OMS). A partir de
1996, o Ministério da Saúde adotou a décima revisão vigente até os dias de hoje (CID-10).
A notificação da Violência Doméstica, Sexual e/ou
outras Violências foi implantada no Sistema de Informação de Agravos de
Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde em
2009, devendo ser realizada de forma universal, contínua e compulsória nas situações de suspeita de violências
envolvendo crianças, adolescentes, mulheres e
idosos, atendendo as Leis 8.069 - Estatuto da Criança e Adolescente;
10.741 - Estatuto do Idoso e 10.778. Essa notificação é realizada pelo gestor
de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) mediante
o preenchimento de uma ficha de notificação específica. Os dados aqui
trabalhados correspondem ao ano 2011. A última atualização
realizada pelo SINAN foi em 26/06/2012 e consultados
entre os dias 23 e 26 de julho de 2012.
Dentre os mais diversos objetos utilizados para
se cometer homicídios as armas de fogo se destacam e continuam sendo o
principal instrumento tanto nos casos femininos quanto masculinos, só que em
proporção diversa. Nos masculinos, elas representam quase 3/4 dos incidentes,
enquanto nos femininos pouco menos da metade. Já outros meios além das armas,
que exigem contato direto, como utilização de objetos cortantes, penetrantes,
contundentes, sufocação etc., são mais expressivos quando se trata de violência
contra a mulher, o que pode ser indicativo de maior incidência de violência
passional.
Tabela 1.0 Meios utilizados nos homicídios
masculinos e femininos (em %). Brasil, 2010.
MEIO
|
Masc. %
|
Fem. %
|
Arma de
fogo
|
72,4
|
49,2
|
Objeto
cortante ou penetrante
|
15,1
|
25,8
|
Objeto
contundente
|
5,3
|
8,5
|
Estrangulamento/sufocação
|
1,0
|
5,7
|
Outros
meios
|
6,0
|
10,8
|
Total
|
100,0
|
100,0
|
Fonte: SIM/SVS/MS
Nas capitais dos estados, os níveis são ainda mais elevados. Se a taxa
média dos estados no ano de 2010 foi de 4,4 homicídios cada 100 mil mulheres, a
taxa das capitais foi de 5,1. Destacam-se aqui, pelas elevadas taxas, Vitória,
João Pessoa, Maceió e Curitiba, com níveis acima dos 10 homicídios em 100 mil
mulheres.
Tabela 1.1. Taxas de homicídio
feminino (em 100 mil mulheres) por UF. Brasil. 2010.
UF
|
Nº
|
Taxa
|
Pos.
|
Vitória
|
23
|
13,2
|
1º
|
João
Pessoa
|
48
|
12,4
|
2º
|
Maceió
|
59
|
11,9
|
3º
|
Curitiba
|
95
|
10,4
|
4º
|
Salvador
|
118
|
8,3
|
5º
|
Recife
|
63
|
7,6
|
6º
|
Goiânia
|
45
|
6,8
|
7º
|
Porto
Alegre
|
50
|
6,6
|
8º
|
Macapá
|
13
|
6,4
|
9º
|
Rio
Branco
|
11
|
6,4
|
10º
|
Natal
|
27
|
6,3
|
11º
|
São
Luís
|
34
|
6,3
|
12º
|
Belo
Horizonte
|
78
|
6,2
|
13º
|
Porto
Velho
|
13
|
6,2
|
14º
|
Aracajú
|
15
|
5,9
|
15º
|
Fortaleza
|
76
|
5,8
|
16º
|
Brasília
|
78
|
5,8
|
17º
|
Boa
Vista
|
8
|
5,6
|
18º
|
Campo
Grande
|
22
|
5,4
|
19º
|
Manaus
|
48
|
5,2
|
20º
|
Belém
|
36
|
4,9
|
21º
|
Rio de
Janeiro
|
130
|
3,9
|
22º
|
Cuiabá
|
10
|
3,5
|
23º
|
Teresinha
|
14
|
3,2
|
24º
|
Florianópolis
|
7
|
3,2
|
25º
|
São
Paulo
|
163
|
2,8
|
26º
|
Palmas
|
2
|
1,7
|
27º
|
Capitais
|
1.290
|
5,4
|
Fonte: SIM/SVS/MS
Foram registrado no Sistema de Informação de
Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde, no país 107.572
atendimentos relativos a Violência Doméstica, Sexual e/ou outras Violências:
70.285 (65,4%) mulheres e 37.213 (34,6%) homens (74 não tem indicação de sexo
da vítima). Praticamente dois em cada três atendimentos nessa área foram
mulheres, o que resulta um claro indicativo dos níveis de violência hoje
existentes contra as mulheres.
Considerando que muitas das características das situações violentas
vividas pelas mulheres dependem da etapa de seu ciclo de vida, julgou-se
conveniente desagregar os dados segundo faixas etárias e/ou etapas dos ciclos para um melhor entendimento das circunstâncias.
Vemos que em todas as faixas etárias, o local de residência da mulher
é o que decididamente prepondera nas situações de violência, especialmente até
os 10 anos de idade e a partir dos 30 anos da mulher. Esse dado, 71,8% dos
incidentes acontecendo na própria residência da vítima, permite entender que é
no âmbito doméstico onde se gera a maior parte das situações de violência
vividas pelas mulheres.
Os pais aparecem como os agressores quase exclusivos até
os 9 anos de idade das mulheres, e na faixa dos 10 aos 14 anos, como os
principais responsáveis pelas agressões. Nas idades iniciais, até os 4 anos,
destaca-se sensivelmente a mãe. A partir dos 10 anos, prepondera a figura
paterna como responsável pela agressão.
Esse papel paterno vai sendo substituído progressivamente
pelo cônjuge e/ou namorado (ou os respectivos ex), que preponderam
sensivelmente a partir dos 20 anos da mulher, até os 59. A partir dos 60 anos,
são os filhos que assumem o lugar de destaque nessa violência contra a mulher.
Com a recente mudança de entendimento do STF – Supremo Tribunal
Federal em face ao julgamento do mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 4.424 na sessão realizada no dia 09 de fevereiro de 2012 a natureza da ação
penal relacionada a situações de violência doméstica é publica incondicionada à
representação da vítima, ou seja, o Ministério Público poderá realizar a
persecução penal mesmo que não haja representação da agredida.
Por força da função de legislador negativo consequente da própria atividade jurisdicional do STF no exercício do controle repressivo e concentrado de constitucionalidade no julgamento de ações desta natureza (declarar a inconstitucionalidade das leis sob o crivo da Constituição Federal) as decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em Ações Diretas de Inconstitucionalidade possuem efeito vinculante e se aplicam a todos os demais órgãos judiciários e da administração pública em todo território brasileiro em face às disposições do artigo 102,§ 2º da Constituição Federal.
Em fim, o Pretório Excelso (STF) removeu do ordenamento
jurídico pátrio todas aquelas partes das leis infraconstitucionais que dificultavam
as perspectivas de proteção à mulher e a família que estão dispostas no artigo
226, parágrafo 8º da Constituição Federal, sendo um relevante precedente
jurídico a fim de possibilitar os órgãos públicos a adotarem medidas legais
cabíveis destinadas a obrigar os agressores a ressarcir os cofres públicos e as
vítimas por todos os danos gerados com tais atitudes que demonstram tamanha
insanidade e covardia.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de
outubro de 1988. Artigo 226, parágrafo 8º.
BRASIL. Lei Federal nº 11.340, de 07 de agosto de 2006.
BRASIL. Lei Federal nº 12.435, de 07 de junho de 2011.